domingo, 11 de janeiro de 2009

Gotas da flor.


Flor estava ali. Por que tão injustiçada? Escrava da ganância alheia, sem escrúpulos, Flor serviria de seu cálice obrigada, a quem fosse enviada.
No dia em que chegou, envolvida ainda por seu mundo pré-adolescente, Flor pensou ter ganhado pai, mãe e irmãs. A respeito das irmãs, sim, poderia ter várias, tanto as que já a esperavam quanto as que apareceriam depois, modestas, encabuladas e temerosas. Entretanto, com relação aos pais tão sonhados... Bom, estes penduraram seus sorrisos atrás da porta juntamente com os casacos e chapéus.
Achou que seria esse o seu último dia de primavera. Última manhã multicor, multiforme, de esperança sob a luz, e naquele noite a Flor chorou.
***
A pobre senhora não conseguia pensar em sua vida sem que gotas grossas desbravassem lhe as maçãs. De solitária, Das Dores passara a ser abandonada ainda jovem. Por quem? Pela mãe, que se suicidara por ter sido traída? Pelo marido, que a deixara dizendo querer ter filhos, o que seria impossível ali por ela ser estéril? Ou pelo tempo, que a fechou como um Livro de Infelicidades?
Nesta noite, a mulher, após desejar uma boa noite à última vizinha que se recolhera por causa da chuva, observava o relativo movimento dos carros na rua, sentada na varandinha coberta de sua casa.
***

Não conseguiu suportar até o fim. Sem uma noção completa do que era o asqueroso mundo com o qual ela havia tido contato, Flor saíra correndo em disparada para qualquer recanto que pudesse chamar de Lar. Estava com a alma exposta, apesar da maquiagem pesada que não servira para brincar de boneca. Encoberta pela chuva que a abrigava como âmnion, Flor sentia a morfina do medo atenuando seu colorido de menina-moça; agora, com pétalas murchas pela acidez da água e da vida, suas nervuras chegavam a empalidecer com a rispidez dos trovões.
A rua seria um refúgio do claustro. Agora, ainda a desabrochar, Flor estava sendo impelida pelas nuvens para o solo úmido, frio e cuspido.
Foi nesta madrugada que o destino mostrou-se cheio de reveses para a menina. Enquanto ela corria, pensando que aquele era o tal inferno de que as freiras tanto lhe falaram, uma simples senhora se atentara para o vulto que se aproximava aparentemente atordoado. "É uma criança!", pensou. No momento em que Das Dores se ergueu, Flor, com os pés feridos da fuga, caía enfraquecida no asfalto.
Das Dores correu e acobertou a Flor. Deu-lhe um colo e um travesseiro para as noites de pesadelo. Histórias, lápis e caderno para sonhar e fazer os outros sonharem com os jardins da infância, então recuperada.
A Dor enraizada floresceu.
A Flor ganhou uma vida que dormia no gineceu, o Amor.